Policiais e bombeiros do Rio de Janeiro que protestam contra a falta de pagamento com a chegada das Olimpíadas estão se comportando de forma “eticamente condenável” “em ações que beiram o terrorismo”, de acordo com o editorial de quarta-feira do maior jornal do Rio, O Globo. O jornal, propriedade do Grupo Globo, que pertence e é controlado pelos bilionários da família Marinho, é o conglomerado midiático dominante no Brasil, além de ser o principal patrocinador e beneficiário das Olimpíadas de 2016.
Ao atacar a polícia, o jornal não criticou a epidemia de assassinatos de jovens negros cometidos pela polícia, nem a ocupação militar em diversas favelas do Rio que fracassou na tentativa de melhorar a segurança pública, nem as milícias, quadrilhas criminosas formadas por policiais fora de serviço e ex-policiais, que controlam de forma violenta e praticam extorsões em diversas áreas da cidade. Em vez disso, a indignação do jornal foi dirigida aos servidores públicos que protestam de forma pacífica por um direito trabalhista fundamental – o recebimento de salários – em uma manifestação que acaba por ameaçar os interesses corporativos milionários de O Globo. Fato não revelado pelo jornal a seus leitores.
“Bem-vindo ao inferno. Policiais e bombeiros não recebem. Quem vem ao Rio de Janeiro não está seguro”, dizia em inglês a faixa carregada por policiais insatisfeitos no aeroporto internacional do Rio na segunda-feira, apenas algumas semanas antes da cerimônia de abertura dos jogos. O Estado do Rio de Janeiro, após desperdiçar bilhões em isenções fiscais generosas e contratos de construção superfaturados com empresas notoriamente corruptas para as Olimpíadas, declarou estado de calamidade pública, sendo forçado a cortar benefícios, atrasar salários e pensões de servidores públicos e cortar o orçamento operacional. Há meses, policiais e bombeiros encontram-se em conflito com o Estado por conta das defasagens no orçamento. O sindicato estadual dos professores está em greve há quase quatro meses.
Na semana passada, o governo federal anunciou uma injeção emergencial de 2,9 bilhões de reais para ajudar a remediar o problema. No entanto, as unidades de polícia operam com falta de gasolina, tinta de impressora, papel higiênico e até água, enquanto a violência chega a níveis fora do controle. Até agora, cinquenta e nove policiais foram assassinados no estado neste ano e partes da capital lembram zonas de guerra de baixa intensidade, enquanto policiais mal treinados e equipados enfrentam quadrilhas criminosas fortemente armadas em tiroteios. Policiais insatisfeitos, com o apoio de seus líderes, ameaçam entrar em greve durante as Olimpíadas, se não receberem seus salários.
“Jogar contra a Rio-2016 é opção irresponsável e contraproducente”, disse O Globo, insinuando que os policiais têm motivações políticas e são patrocinados por sindicatos (em clara alusão ao Partido dos Trabalhadores — que recebe apoio dos sindicatos — da presidente suspensa Dilma Rousseff, contra quem O Globo e suas filiais vem realizando uma campanha veemente). “Mas isso deve ser feito no âmbito doméstico, dentro da esfera apropriada — nunca por meio de chantagens contra um evento que trará benefícios às próprias finanças estaduais”, continuou.
Porém, o contundente editorial não menciona que o Globo é um dos grandes intervenientes dos Jogos Olímpicos, com enormes investimentos em jogo: sua empresa controladora, o enorme império midiático Grupo Globo, é fornecedor e patrocinador oficial das Olimpíadas de 2016, ao lado de outras duas emissoras, e pagou ao Comitê Olímpico Internacional 190 milhões de dólares pelos direitos de transmissão em rede nacional e on-line dos Jogos de Inverno de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Além disso, o Grupo Globo possui um contrato de transmissão exclusiva de 2016 a 2032 por uma quantia não revelada.
De acordo com a AdAge, a Rede Globo recebeu 420 milhões de dólares pela venda de pacotes para as Olimpíadas “que incluem um número elevado de anúncios e menções em televisão e na Globo.com” de outros patrocinadores oficiais, como Coca-Cola, Procter & Gamble, Bradesco e Claro.
O editorial aponta a “irresponsabilidade” de “jogar contra” os Jogos Olímpicos, como se todos devêssemos nos orgulhar de sediar um evento que supostamente beneficiará indistintamente os cidadãos”, disse à The Intercept Sylvia Moretzsohn, professora de jornalismo da Universidade Federal Fluminense. “É a velha artimanha de sempre: falar em nome do interesse geral para apagar a existência de interesses muito particulares”, concluiu a professora.
A divulgação de conflitos de interesse – reais ou aparentes – é um princípio fundamental da ética jornalística.
No ano passado, o Grupo Globo, maior conglomerado midiático da América Latina, alcançou uma renda bruta de 16 bilhões de reais, lucrando 3 bilhões de reais. Estima-se que cada um dos três irmãos que controlam o grupo estão avaliados em 5,2 bilhões de dólares líquidos. O salário de um policial iniciante da Polícia Militar do Rio de Janeiro é de pouco mais de R$ 2.726; um policial civil recebe pouco menos de R$ 4.190 por mês.
O Globo e sua empresa controladora não responderam aos pedidos de comentário da The Intercept.
“Não é de hoje que O Globo substituiu o jornalismo pela propaganda”, acrescenta Moretzsohn. “Mas eu reconheço que é difícil fazer propaganda quando o país passa por sua maior crise política desde o fim da ditadura, e que vem sendo acompanhada de perto pela imprensa estrangeira.”