O jovem promotor Deltan Dallagnol (leia Dallanhol), conspícuo integrante da força-tarefa da Operação Lava Jato, ao interrogar Marcelo Odebrecht, libera todo seu espírito redentor, olhos de missionário, rútilos, diria Nelson Rodrigues.
Ele informa o interrogado em tom hierático: aqui estamos nós para aliviá-lo do peso que oprime sua consciência, de fato para ajudá-lo a reencontrar o bom caminho, faça a sua confissão e ganhe a paz interior. Algo assim, segundo consta.
Permito-me imaginar, como resultado final da tragédia do ridículo encenada pelo golpe, a candidatura do promotor Dallagnol à Presidência da República, obediente, mais do que qualquer outra, à lógica do absurdo. Há quem prefira o juiz Sergio Moro, ou mesmo o deputado Jair Bolsonaro. No meu canto, não hesito em escalar Dallagnol.
Moro, como o promotor, cultiva o ímpeto da grande missão, carece, porém, no meu entendimento, da vocação da catequese que Dallagnol manifesta radiosamente. Além do mais, o juiz aprecia envergar camisas pretas, de péssima memória.
Já Bolsonaro é um camisa-preta autêntico, poderia ter participado da Marcha sobre Roma. Nem um nem outro buscam redimir os pecadores, e sim puni-los de forma exemplar.
Dallagnol, em contrapartida, é adequado, diria mesmo óbvio, neste nosso teatrinho-bufo, de plateia cada vez mais apinhada por pagadores de dízimo. Ele é capaz de transformar a ribalta em púlpito e, a encarnar o desfecho no último ato, parece-me o mais condizente, em sintonia finíssima com o andamento do entrecho.
Tentemos pôr um mínimo de ordem na orgia farsesca que as circunstâncias nos obrigam a assistir, melhor, a viver, sugeriria o Marquês de Sade, inveterado e irônico pecador. Quais são as chances de vida exitosa de um governo presidido por Michel Temer?
Vale perguntar aos botões se logrará durar até as eleições de 2018. Sobra a evidência de que, a prosseguir impávida a Lava Jato, entre mortos e feridos ninguém vai sobrar. Daí a saída pelo caminho apontado pelo promotor Dallagnol, intérprete inexcedível da estultice reinante. Trata-se, simplesmente, de combater a corrupção pela salvação das almas.
Insisto: há uma lógica na ironia. Certo, inegável, é o caos em que o golpe nos mergulha, em meio a uma crise econômica inescapável para o país exportador de commodities e de indústria em frangalhos.
Ao enxergar o Brasil de hoje, ocorre-me a imagem do pesqueiro escocês ao largo de Aberdeen na madrugada invernal invadida pela cerração mais espessa, privado até do apito por um defeito mecânico.
Não é previsível escapar desta crise no prazo curto e médio, mas o marasmo político, que a situação econômica e social multiplica, se oferece a uma saída clara, indisfarçável, aventada por vozes diferentes e bem-intencionadas.
CartaCapital faz tempo aderiu à ideia da convocação de um plebiscito destinado a conhecer as demandas da Nação, ao que tudo indica desejosa de novas eleições tão logo possível. Se as pesquisas de opinião anularam os votos de 2014, a justificar o complô golpista, as mais recentes, do tempo nebuloso de governo interino, denunciam nitidamente a rejeição de Temer e a aspiração do voto antecipado.
Outra questão está em jogo, segundo CartaCapital, e sua solução correta conforme a lei é a premissa indispensável a um futuro sem traumas: o retorno de Dilma Rousseff ao Planalto, por mais temporário.
Algo me intriga pessoalmente, na qualidade de cidadão e de jornalista: que pensam, que sentem, ao pousarem suas cabeças sobre o travesseiro do sono noturno, os senhores congressistas que votaram a favor do impeachment a despeito das crenças democráticas que costumam proclamar? E que dizer dos senadores que escalaram o muro e lá do alto encaram o horizonte com olhos opacos? E silentes ministros do STF, aos quais caberia o papel de sentinelas da lei?