Esporte
Homossexualidade no esporte: Brasil mantém futebol dentro do armário
Jogadores assumem ser gays nos Estados Unidos e na Europa enquanto discussão mal existe no país da Copa do Mundo. Mesmo ex-atletas temem repercussão
Por Alexandre Alliatti*Rio de Janeiro
Justin Fashanu assumiu ser gay antes de cometer suicídio na Inglaterra (Foto: Getty Images)
Um bilhete escrito por familiares de Justin Fashanu e posicionado em uma coroa de flores ao lado de seu caixão dizia: 'A única certeza é que você está finalmente livre'. Em 1998, o primeiro jogador britânico a se assumir publicamente como homossexual cometeu suicídio em Londres. Enforcou-se. Deixou uma carta de despedida em que negava acusações de ter abusado de um jovem de 17 anos nos Estados Unidos. No texto, afirmava que, por ser gay, jamais seria julgado de forma justa.
Fashanu, de família nigeriana, ex-atacante de clubes como Norwich, Southampton, Manchester City e West Ham, não tinha grandes pretensões de engajamento social. Não tinha sequer perfil para ser um símbolo de libertação sexual - até tentou trocar segredos de sua vida amorosa por dinheiro. Mas acabou se tornando uma espécie de pedra fundamental em uma discussão que ainda engatinha, mas parece em vias de começar a caminhar com firmeza, especialmente em meio à série de polêmicas que envolve os Jogos de Inverno de Sochi: a presença de homossexuais no esporte, incluindo o futebol.
Passados 15 anos da morte de Fashanu, o tabu permanece. Mas está mais frágil. Repetidos atletas, de repetidos esportes, vêm saindo do armário. No futebol, os casos ainda são raros, muito especialmente no Brasil, onde jamais um jogador de renome nacional se declarou gay. A questão é de aceitação, mais externa do que interna. Afinal, como a maioria dos torcedores reagiria ao saber que o capitão, o centroavante ou o lateral-direito reserva de seu time é homossexual?
No Brasil, nenhum jogador dos considerados grandes clubes assumiu publicamente sua homossexualidade. Mas um já teve que se declarar heterossexual. Richarlyson, hoje no Atlético-MG, se viu obrigado a ir a público nos tempos de São Paulo para dizer que não é gay depois de um dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, cometer uma gafe em um programa de TV. Cyrillo afirmou que o atleta diria que é homossexual em uma entrevista (algo que jamais aconteceu). O dirigente pediu desculpas a Richarlyson, mas a questão acompanhou o jogador ao longo da sua carreira
Sheik e o selinho que mudou sua relação com parte da torcida do Timão (Foto: Reprodução Instagram)
No ano passado, Emerson Sheik, atacante campeão da Libertadores e do mundo pelo Corinthians, postou uma foto em uma rede social dando um selinho em um amigo, o empresário Isaac Azar, durante um jantar. Fez para provocar - incentivado justamente por uma conversa sobre homofobia. E conseguiu. Sua relação com a torcida do clube que defende nunca mais foi a mesma. Antes ídolo, se tornou alvo. Foi xingado em faixas. Uma delas o chamava de "viadinho". Sheik reagiu dizendo que tudo não passava de um "preconceito babaca".Faixa ataca Emerson Sheik depois de polêmico
selinho dele em amigo (Foto: Rodrigo Faber)
Sheik mexeu em um vespeiro onde os demais jogadores brasileiros de clubes de ponta, heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, jamais ousaram mexer. No Brasil, esse papel coube antes a Messi. Mas não Lionel, o Messi argentino: no caso, Jamerson, o goleiro Messi, atleta do Palmeira de Goianinha, no Rio Grande do Norte. Em 2010, ele virou notícia nacional ao se assumir como gay. Não teve grandes problemas depois disso. Hoje, está novamente no clube.Messi, goleiro do Palmeira-RN, homossexual assumido (Foto: Tiago Menezes)
- Você tem que ser o que você é, não esconder. No futebol, isso não é aceito, mas meus times aceitaram com naturalidade. Eu me senti um pouco melhor (depois de assumir). Quem não se assume sofre um pouco. As pessoas precisam ver que você tem uma parte feminina. Declarando, as pessoas aceitam mais. Dentro de campo, é normal as pessoas pegarem no pé. Com o adversário, acontece muito, é bastante normal - disse o goleiro Messi.
O gesto do Messi genérico tem sua dose de coragem. Mas o caminho para um atleta mais conhecido fazer o mesmo parece longo. Ou mesmo um ex-atleta. O GloboEsporte.com procurou dois ex-jogadores conhecidos no meio do futebol como homossexuais. Nenhum deles aceitou participar desta reportagem. Eles alegaram dificuldades profissionais (eventuais prejuízos a uma carreira ainda vinculada ao futebol) ou pessoais para abordar a questão publicamente.
- Compreendo a importância de se discutir o tema, mas entenda que eu não posso fazer isso - disse um deles.
- Nesse momento que vivo, não tenho interesse em falar sobre o assunto - afirmou o outro.
O temor é compreensível. Mesmo no exterior, onde a abertura vem sendo maior, o gesto parte de ex-jogadores, não de atletas em atividade. Foi o caso do alemão Thomas Hitzlsperger. No início deste ano, o ex-meia, de 31 anos, afirmou à revista "Die Zeit" que é homossexual.
- Declaro minha homossexualidade porque desejo que essa questão avance no mundo do esporte profissional - disse ele.Thomas Hitzlsperger: 'Desejo que essa questão avance no
mundo' (Foto: Getty Images)
Antes dele, um atleta de futebol dos Estados Unidos fizera o mesmo. Mas com uma diferença. Robbie Rogers, aos 25 anos, tornou pública sua homossexualidade em 2013 e automaticamente anunciou que estava abandonando os campos. Depois, mudou de ideia e foi contratado pelo Los Angeles Galaxy. Estreou pelo clube em maio, três meses depois de seu comunicado. Ao ir a campo, foi aplaudido por mais de 20 mil pessoas.Robbie Rogers diz que é gay, se aposenta e volta a jogar nos Estados Unidos (Foto: Getty Images)
Esses grupos costumam considerar tímidas as ações de órgãos oficiais do esporte. Isso inclui a Fifa, que em seu estatuto fala em punições contra "discriminação de qualquer tipo contra um país, pessoa ou grupos de pessoas de qualquer origem étnica, gênero, língua, religião, política ou outra razão", sem especificar preferência sexual.
- Esta não é uma prioridade para muitas organizações, e estamos realistas em relação a isso - comenta Brian Kitts.
Enquanto o debate se espalha lá fora, no Brasil a discussão segue eclipsada. Parece distante o momento em um atleta de ponta do esporte mais popular do país enfrentará a corrente e se sentirá confortável para não esconder sua sexualidade.
O pior é sabermos que tem e o cara não assumir"
Abel Braga, treinador
Abel Braga, um dos treinadores mais experientes do Brasil, acredita que um jogador homossexual, se achar importante sair do armário, deve fazê-lo. O atual comandante do Inter, famoso por seu controle de vestiários, entende que um jogador fingir ser heterossexual pode ser mais prejudicial ao ambiente do clube do que se assumir como gay - mesmo que apenas internamente.
- O pior, no meu modo de pensar, é sabermos que tem e o cara não assumir. Por que não assume? É opção dele. No vestiário, se tem e não assume, complica. Não precisa ser publicamente, mas se não assumir no vestiário a coisa vira um pouco para o lado da gozação. Acho que o melhor é o cara chegar ali dentro e assumir. Temos que ter a cabeça aberta com esse tipo de situação. É uma coisa absolutamente normal hoje - opinou o treinador.
Julio Moreira, presidente do Grupo Arco-Íris, atuando há 20 anos em prol da comunidade LGBT, vê dificuldades em jogadores de futebol tocarem no assunto atualmente.
- Há uma cultura machista no Brasil que envolve principalmente o futebol. Existe uma cultura machista que se reproduz até na forma como a gente comemora nos jogos, com xingamentos. Se o juiz roubou, ele é ladrão, ele é veado. A sociedade pensa que é pecado, doença, crime, e isso faz com que atletas que atuam em times profissionais não possam se assumir. Tem o constrangimento que eles sofrem no meio e na torcida e também o reflexo de patrocínio. No futebol, acho que ainda é muito difícil (a pessoa assumir que é homossexual). Claro que tem, mas ele precisam viver se policiando. E é difícil viver uma homossexualidade escondida num ambiente assim - comenta ele.
Não existem números precisos sobre o percentual da população brasileira que é homossexual. No censo de 2010, o IBGE levantou dados sobre a quantidade de uniões homoafetivas (0,1% do total, ou cerca de 53 mil casais), mas não sobre quantos brasileiros se declaram gays - o que dificulta uma projeção sobre o percentual de homossexuais ou bissexuais em um clube de futebol.
* Colaborou Edgard Maciel de SáFONTE:http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2014/02/homossexualidade-no-esporte-brasil-mantem-futebol-dentro-do-armario.html
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